tag:blogger.com,1999:blog-243584172024-03-08T10:47:42.874+00:00Crónicas de noite e de diaProfessor O.http://www.blogger.com/profile/10971521447115333300noreply@blogger.comBlogger4125tag:blogger.com,1999:blog-24358417.post-65041410173783435812010-06-13T14:16:00.000+01:002010-06-13T14:18:20.197+01:00<span style="font-family:verdana;"><strong>4.<br /></strong><br /><br />Margarida concluíra há pouco menos de seis meses a sua licenciatura em curso extremamente específico<br /><br /><span style="color:#ffffff;">_____</span>excelentes perspectivas de emprego!, assegurava o panfleto que lera na ingenuidade dos seus dezoito<br /><br />e, como toda a gente na sua situação, lutava furiosamente para encontrar o melhor trabalho precário possível. Aliás, o que custava verdadeiramente a Margarida era este mesmo pensamento<br /><br /><span style="color:#ffffff;">_____</span>como toda a gente<br /><br />como se mais não fosse do que um elemento inevitavelmente seguidista de um rebanho pouco menos do que amorfo. E que fazer aos sonhos anteriormente tão vincados, deixar que aquela amargura<br /><br /><span style="color:#ffffff;">_____</span>há quem lhe chame maturidade<br /><br />que se ganha com o passar dos anos os transformasse em meras ilusões?<br /><br /><span style="color:#ffffff;">_____</span>Não, isso não<br /><br />ou bem que poderia reservar um lugar cativo na previsibilidade da sua vida. Margarida não era uma conformista, não era acomodada, mas sabia bem o peso que a vida do dia a dia acabava por ter no seu percurso. Aliás, todo o caminho percorrido até aqui parecia ter sido previamente determinado, embora por quem ou pelo quê não fizesse a mínima ideia, visto que sempre se habituara a pensar que tinha crescido imbuída numa total liberdade de escolha<br /><br /><span style="color:#ffffff;">_____</span>isso sim, uma ilusão<br /><br />generosamente fomentada pelos seus pais. Mas, independentemente de tudo isso, e neste preciso momento em que se encontrava tão interrogativa em relação a si mesma, Margarida estava mais do que disposta a traçar o seu futuro<br /><br /><span style="color:#ffffff;">_____</span>fosse ele qual fosse<br /><br />e deixar de se lamentar por aquilo que já não poderia mudar. Chegara a hora de fazer algo verdadeiramente seu! Determinada em seguir esta ideia, Margarida pôs de lado os classificados do jornal que lia sempre ao pequeno-almoço e decidiu que até ao final do dia tomaria uma decisão definitiva. Para ajudar, pensou em dar um passeio pelo parque da cidade, a placidez daquele lugar parecia-lhe a conselheira ideal dadas as tormentosas circunstâncias. Vestiu-se à pressa, pegou na sua carteira e saiu de casa em direcção à paragem de autocarro. Foi então que se apercebeu mais uma vez<br /><br /><span style="color:#ffffff;">_____</span>merda, não tenho dinheiro<br /><br />do porquê de tantas limitações. O dinheiro, sempre o dinheiro a comandar tudo. Mas neste dia em particular Margarida não estava disposta a desistir facilmente<br /><br /><span style="color:#ffffff;">_____</span>não, hoje não<br /><br />e, sem pensar em mais nada, impedindo qualquer tipo de desencorajamento fútil, lá começou a percorrer, pé ante pé, os dez quilómetros que a separavam de tão importante destino. Afinal, ainda era bastante cedo e o dia parecia-lhe<br /><br /><span style="color:#ffffff;">_____</span>como nenhum outro<br /><br />cheio de promessas.</span>Professor O.http://www.blogger.com/profile/10971521447115333300noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-24358417.post-25613613721000915412010-06-13T14:06:00.000+01:002010-06-13T14:09:55.486+01:00<span style="font-family:verdana;"><strong>3.<br /></strong><br /><br />O sol entrava de mansinho por entre as frestas da persiana, desenhando pequenos e sequenciados buracos de luz na parede oposta. Rómulo dormia invariavelmente de barriga para cima, ressonando alarvemente, quando o despertador se decidia a tocar. Acordava sempre com as notícias, o rol de desgraças anunciado em cinco minutos<br /><br /><span style="color:#ffffff;">_____</span>por cá o desemprego aumentou em relação ao período homólogo do ano passado e o índice de pobreza atingiu valores máximos, já no<br /><br /><span style="color:#ffffff;">__________</span>escolher país<br /><br /><span style="color:#ffffff;">_____</span>a escalada de violência continua, mais<br /><br /><span style="color:#ffffff;">__________</span>escolher número<br /><br /><span style="color:#ffffff;">_____</span>mortos desde a última contagem, enquanto no<br /><br /><span style="color:#ffffff;">__________</span>escolher outro País<br /><br /><span style="color:#ffffff;">_____</span>um<br /><br /><span style="color:#ffffff;">__________</span>escolher catástrofe natural<br /><br /><span style="color:#ffffff;">_____</span>vitimou<br /><br /><span style="color:#ffffff;">__________</span>escolher outro número, desta vez à volta dos milhares<br /><br /><span style="color:#ffffff;">_____</span>mas não há<br /> <br /><span style="color:#ffffff;">__________</span>descansem, portanto<br /><br /><span style="color:#ffffff;">_____</span>portugueses entre a vítimas, e por agora é tudo, esperamos que tenha um bom dia na companhia da sua estação preferida, já de seguida ouça a melhor música <br /><br />tão absurdamente deprimente, rapidamente o afastava de qualquer sono ou sonho prazenteiro que estivesse a ter. Era então altura de se arranjar e seguir para a escola, onde em pouco menos de uma hora logo teria de aturar uma horda de adolescentes em guerra permanente com as suas hormonas<br /><br /><span style="color:#ffffff;">_____</span>e portanto com todo o mundo<br /><br />e com pouca vontade de absorverem o fascínio da matemática. Era o facto de acordar com as notícias e de ler o jornal com o café no bar da escola que o impedia de pensar<br /><br /><span style="color:#ffffff;">_____</span>mas que raio fiz eu para merecer isto<br /><br />pois apesar de ter quase cinquenta anos e estar divorciado, de ocupar sozinho uma cama de casal, de ter de lidar com seres humanos em crescimento e em constante ebulição, de guardar já poucas amizades e contactos familiares, de se sentir incrivelmente só à hora de jantar, pelo menos não estava desempregado, não estava num país em guerra, não assistira a nenhuma catástrofe natural e o futuro, quem sabe, ainda poderia trazer algo de melhor a tão insípida vida.</span>Professor O.http://www.blogger.com/profile/10971521447115333300noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-24358417.post-73823974882185668862010-06-13T14:01:00.000+01:002010-06-13T14:11:14.502+01:00<span style="font-family:verdana;"><strong>2.<br /></strong><br /><br />Maria Adelaide acordava todos os dias às seis da manhã. Mulher nos seus quarentas, não se lembrava de ter feito outra coisa na sua vida senão trabalhar nas limpezas. Estava Maria Adelaide na adolescência quando a mãe, também ela entendida na lixívia, nos detergentes, na pá e na vassoura, mas já quase incapacitada, decidira levá-la consigo para a casa onde então trabalhava, habitada por um casal de meia-idade e sem filhos que, por caprichos insondáveis, não tolerava que uma empregada estivesse ainda presente quando por fim chegavam a casa depois do trabalho<br /><br /><span style="color:#ffffff;">_____</span>já a avisei, não quero voltar a encontrá-la aqui. Que seja a última vez.<br /><br />Ora a mãe de Maria Adelaide, apercebendo-se de que as suas limitações a impediam de cumprir a função no horário previsto, não tivera outra hipótese senão recorrer à filha<br /></span><br /><span style="font-family:verdana;"><span style="color:#ffffff;">_____</span>Lai, preciso que venhas comigo ou sou despedida e ficamos sem nada<br /><br />e Lai, bastante adulta para a sua idade e sabendo o que custava à mãe pôr comida à mesa todos os dias<br /><br /><span style="color:#ffffff;">_____</span>não te preocupes, mãe, não deixo que nada nos aconteça<br /><br />logo se disponibilizou para ajudar, iniciando aí o curso intensivo de empregada de limpeza para o qual, repetia ainda hoje<br /><br /><span style="color:#ffffff;">_____</span>também deveria haver diploma.<br /><br />Lai tornara-se numa profissional extremamente competente no seu ofício. Depois de acordar e sair de casa, iniciava uma autêntica maratona de higiene domiciliária, percorrendo diversas habitações ao longo do dia e deixando em todas elas um rasto de limpeza e competência que não só era aclamado pelos diversos empregadores<br /><br /><span style="color:#ffffff;">_____</span>bis, bis<br /><br />como lhe deixava uma sensação preenchedora de dever cumprido. Lai, não enriquecendo<br /><br /><span style="color:#ffffff;">_____</span>não se enganem, ninguém enriquece a limpar a merda<br /><br /><span style="color:#ffffff;">__________</span>desculpem-me, a sujidade<br /><br /><span style="color:#ffffff;">_____</span>dos outros<br /><br />era feliz com o que fazia, independentemente de todos os dias regressar a casa com o cheiro a lixívia, estéril mas agressivo, que o seu desempregado e sobrenutrido marido desdenhava.</span>Professor O.http://www.blogger.com/profile/10971521447115333300noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-24358417.post-4999147475817253382009-12-21T12:37:00.000+00:002010-06-13T14:05:20.349+01:00<span style="font-family:verdana;"><strong>1.<br /></strong><br /><br /><span style="color:#ffffff;">______</span>Tomar conta dos mortos, era só o que me faltava<br /><br />pensou Sr. Adelino ao preparar-se para o seu novo trabalho. Depois de passar quase toda a sua vida como um eficiente encarregado de pessoal numa fábrica de conservas<br /><br /><span style="color:#ffffff;">______</span>e só tenho a quarta classe, acrescentara orgulhoso na recente entrevista<br /><br />encontrara-se no desemprego há sete anos após uma trágica falência, justificada no momento com um ar encenadamente pesaroso do seu antigo patrão<br /><br /><span style="color:#ffffff;">______</span>é a economia deste país, Sr. Adelino, não podemos fazer nada<br /><br /><span style="color:#ffffff;">______</span>e indemnizações<br /><br /><span style="color:#ffffff;">______</span>não há dinheiro para nada, Sr. Adelino, tomara eu ter dinheiro para sustentar os meus filhos<br /><br />mesmo sabendo um e outro que os filhos passeavam os carros novos junto à beira rio e organizavam festas sem fins lucrativos todos os fins de semana na ostensiva vivenda familiar<br /><br /><span style="color:#ffffff;">______</span>mas<br /><br /><span style="color:#ffffff;">______</span>você não entende, Sr. Adelino, não sabe o que custa sustentar uma família, você é um homem só.<br /><br />Fora então assim, com aquela palavra tão curta quanto implacável, com aquela estocada mortal em toda a sua possível retórica, que Sr. Adelino se prostrara perante a insignificância da sua vida, desde há muito contável em extensão familiar apenas pela unidade. Agora, após percorrer os trabalhos possíveis, todos curtos em extensão e em vencimento<br /><br /><span style="color:#ffffff;">______</span>ninguém quer um velho<br /><br />eis que arranjara mais este como vigilante na morgue do hospital. Qualificações: não ter vida própria, pensou com humor ao ler o anúncio no jornal<br /><br /><span style="color:#ffffff;">______</span>procura-se: homem entre os 40 e os 65 anos, com disponibilidade imediata, preferencialmente sem dependentes, para trabalhar em horário nocturno<br /><br />não obstante a tristeza que lhe causara tal auto-ironia. A verdade é que não poderia deixar escapar tão apropriado chamamento, afinal, apesar de só e velho, Sr. Adelino também tinha as suas despesas e tão pouco pensava em desistir de viver ou em sobreviver miseravelmente. Apesar do ridículo que lhe parecia ter de vigiar os mortos<br /><br /><span style="color:#ffffff;">______</span>não vão fugir, pois não<br /><br />este parecia o trabalho indicado para si.</span>Professor O.http://www.blogger.com/profile/10971521447115333300noreply@blogger.com0